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A SALVAÇÃO COMO DIVINIZAÇÃO

A SALVAÇÃO COMO DIVINIZAÇÃO

Pe.Marcelo Mendes Miranda

Toda pergunta sobre a pessoa do homem deve preceder e exceder em importância todas as demais sobre ele (Cf. SCHÜTZ & SARACH, 1980). A partir desta premissa, depreende-se oportuno e apropriado refletir sobre o seu ser, sua origem, existência e destino, sobretudo nesses dias de modernidade em que impera uma cultura de morte desfiguradora da dignidade humana.

Deus revela o humano ao humano na pessoa de Jesus. E, assim, o convida a passar da ideia de pessoa para a sua experiência vivencial que é beleza tão antiga e sempre nova, uma vez que se realiza e se constrói à medida que se relaciona com o próprio Deus e com seu semelhante, vivendo sua vocação e missão. Contudo, o ser humano, pela desobediência e concorrência com o seu Criador, perdeu a dimensão da beleza, do seu ser pessoa e, com isso, a dimensão salvífica. Por isso é preciso recuperar a dimensão do diálogo entre essas duas liberdades, a humana e a divina, que são pessoas na medida em que dispõem de si para a escuta atenta do outro. Ouve ó Israel (cf. Dt 6, 4).

O ser humano não possui em si o sentido de sua existência, mas o recebe como dom de um Outro, do Criador. A grande questão é que o homem não se autoproduz, sua existência é dom, é fruto da gratuidade do Criador. Foi formado à imagem e à semelhança de Deus e essa condição de imagem e semelhança encontra sua plenitude e realização na pessoa por antonomásia, Jesus Cristo.

Nesse descompasso entre o que o ser humano se tornou e aquilo que é chamado a ser é que se insere esta proposta de trabalho. O contexto atual oferece uma oportunidade de diálogo, ainda que esteja em voga uma certa pretensão de verdade unilateral e individual, pois o ser humano é ser de relação, e prescindir dessa condição seria mutilar e negar o seu ser pessoa.

Na atualidade são múltiplas as formas e variadas as ciências que buscam compreender o ser humano em seu significado mais profundo, contudo parecem partir de algo, indivíduo, e não de alguém, pessoa. É nessa lacuna que a presente reflexão quer trabalhar. De modo a resgatar a fundamentação agápica da humanidade, isto é,

o amor como princípio ontologicamente determinante da realidade. Pois: criado por amor e para amar, o ser humano é alguém [pessoa] que se realiza apenas por meio do esforço de discernir as exigências que derivam do amor no dia a dia, certo de que um dia se encontrará face a face com o Amor que esteve na origem de tudo e deu sentido a tudo (SILVA, 2019).

O ser humano não se limita à sua natureza, à sua maternidade físico-temporal, tampouco a uma função, mas é pessoa na medida que dirige sua liberdade para fazer comunhão com Deus numa atitude de abertura e encontro para viver a filiação divina dada como dom no Filho, Jesus Cristo. Assim, “à pergunta que interroga ‘quem’ é o homem não se responde com múltiplas e parciais respostas, como acontece no problema ‘que’ é o homem, mas com uma única palavra enquadrada no ‘ser pessoal’ do homem” (SCHÜTZ & SARACH, 1980).

Nesse sentido, faz-se necessário retornar àquela verdade que é a pessoa e que pode unir tudo, porque é viva, eterna, onicompreensiva e amante (cf. TENACE, 2005). Para superar o divórcio entre vida e verdade que tornou a pessoa em indivíduo artificial, conceitual e não pessoal, expressão de uma subjetividade com pretensão de objetividade.

A partir do exposto, o presente trabalho quer contemplar, discernir e propor um diálogo acerca do ser humano enquanto pessoa imagem e semelhança de Deus. Ser humano esse que é chamado a ser por participação aquilo que Deus é por natureza, relação.

Contudo, nessa busca por realizar-se em sua existência, esse ser contingente com sede de infinito toma vias equivocadas, queima etapas desse processo, que por vezes se apresenta laborioso. Foi justamente o equívoco de uma dessas vias que o fez se apartar de sua vocação e da graça na qual fora criado. Ao passo de ver a Deus como um amigo, no uso da sua liberdade, enxergou a Deus como um concorrente (Gn 3, 1 – 6). Essa atitude deliberada corrompeu a sua relação com Deus: “do ver o amor de Deus”, o homem passa a “conceber uma ideia de Deus”.

Uma vez perdida a verdadeira “ideia” de Deus, perde também a verdadeira “ideia” de si, torna-se a-relacional. Foi nessa perspectiva que se inseriu a presente pesquisa; compreender o ser humano como ser de relação, criado por Deus no amor para participar de sua vida divina, mas para que possa acolher e realizar essa vocação é preciso como visto, recuperar aquela realidade primeira na qual fora criado; pessoa, imagem e semelhança de Deus, ser de relação. Porque não há possibilidade de divinização/salvação para o homem se este não vive como pessoa, haja visto ser esta a conditio sine qua non para que este possa superar o orgulho de se pretender autossuficiente e não mais ver a Deus como concorrente e rival, mas reconhecer Nele a fonte de sua origem e destino para o qual caminha pressuroso na penumbra da fé.

A relação com Deus e com os outros é constitutiva do ser pessoal do homem e esta foi vivida de modo pleno por Jesus Cristo, o Deus homem. Assim, o fundamento da pessoa repousa sobre a relação com o tu, que nos liga a Deus criador e a Cristo, “o novo criador”, perante o qual devemos considerar todo o nosso ser pessoal como resposta de amor. Jesus Cristo, portanto, é o autêntico e original projeto de Deus para a humanidade, é Ele o modelo de verdadeira humanização, já que Ele não é só verdadeiro homem, é também homem verdadeiro.

Assim, a salvação é divinização porque é participação na vida divina, o ser humano se diviniza à medida que acolhe a sua vocação de ser por participação aquilo que Deus é por natureza. E essa divinização só acontece na medida que o homem se torna pessoa, isto é, se relaciona com Deus e com os outros, torna-se deus ao modo de Deus. Dessa forma, para a antropologia cristã não é possível falar de divinização e salvação, sob pena de hipocrisia, sem a dimensão da relacionalidade, da vivência no amor agápico de Deus, portanto sem ser pessoa. A divinização é oferecida como um dom à pessoa por um Deus que é pessoal. O individual não é capaz de corresponder ao amor e aceitar o dom oferecido porque se sente autossuficiente, segue pelo caminho da “justificação pelas suas próprias forças, o da adoração da vontade humana e da própria capacidade, que se traduz em uma autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor” (GeE, 57).

O ser humano só será pessoa e alcançará sua divinização na medida em que estiver disposto a se relacionar com Deus e com o seu próximo fazendo de sua vida eucaristia, presentificando na história a “epifania da nova criação, deste novo modo de existir redirecionado e oferecido ao amor de Deus, à comunhão com Ele” (RUPNIK, 2009), com os seus iguais e toda a criação. É precisamente o que pedimos a Deus na celebração do dia em que Ele se faz homem por nós:

Ó Deus, que admiravelmente criastes o ser humano e mais admiravelmente restabeleceste a sua dignidade, dai-nos participar da divindade de vosso Filho, que se dignou assumir a nossa humanidade. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo (MR, p. 94).

Assim, a reflexão antropológica deve estar sempre interligada à reflexão trinitária, cristológica e eclesiológica para oferecer um caminho alternativo ao da fragmentação e individualização que a todos ameaça, através de uma proposta credível e atual, fiel à Tradição e aberta a um adequado ajustamento para superar eventuais compreensões reducionistas e mesmo desumanizantes a respeito do homem e seu Revelador. Foi o que intentamos fazer, o que vimos e ouvimos, vos transmitimos (cf. 1 Jo 1, 3).

BIBLIOGRAFIA

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Missal Romano. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1995. p. 94.
FRANCISCO. Exortação Apostólica Gaudete Et Exsultate. São Paulo: Paulinas, 2018.
RUPNIK, Marko Ivan. Para uma antropologia de comunhão V I. Bauru: Edusc, 2005.
SILVA, Antônio Wardison. Antropologia Teológica: Pensar o Humano na Universidade. São Paulo: Ideias e Letras, 2019.
SCHÜTZ, C; SARACH, R. O homem como pessoa. In: FEINER, J.; LOEHRER, M. Mysterium Salutis. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1980. V. II/3, p. 73 – 88.
TENACE, Michelina. Para uma antropologia de comunhão V II. Bauru: Edusc, 2005.

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