/
/
A obra santificadora do Espírito Santo

A obra santificadora do Espírito Santo

Por Igor Neves Ferreira:

Se aproximando o término do Tempo Pascal, cada fiel que experimenta uma vida nova em Cristo é convidado a se abrir ao Dom do Espírito Santo. Certamente, aqueles que foram alcançados pela graça da Ressurreição vivem segundo o Espírito, e suas vidas estão marcadas primordialmente pelo fruto do amor (Gl 5, 22). Cada um é chamado a ouvir e assumir como regra de vida, a santidade, expressa naquele mandato de Jesus: “Sede santos, como vosso Pai do céu é santo” (Mt 5, 48). Ser santo, dentre tantas definições, significa viver imerso na realidade do Reino de Deus, numa vida segundo o Espírito Santo, que se manifesta de maneira próxima de todos, através da caridade.

O estabelecimento do Reino de Deus é uma realidade central na economia da salvação. Esse Reino, longe de ser uma construção ou conquista meramente política, é o ‘senhorio’ de Deus no coração do ser humano, como nos ensinou Cristo. Deus se alegra com um coração que vive na sua graça, ocupando-se unicamente de sua vontade. Isso, contudo, não acontece sem a liberdade humana e a abertura ao Espírito de Deus que purifica o ser humano de suas imperfeições. O reinado de Cristo é gerado no homem através do Espírito Santo que santifica e vivifica todas as coisas (MOLTMANN, 2022a, p. 25-26).

Antes de aprofundar na relação que há entre o Espírito e a santidade, é preciso destacar que a santificação do homem sempre foi um propósito de Deus dentro da tradição bíblica. Em diversas ocasiões se vê como vontade divina, que o homem se afaste do pecado e cumpra os mandamentos divinos. No Antigo Testamento, pode-se entender a santidade como a prática da justiça, que é justamente afastar-se daquilo que é impuro, profano e proceder fielmente como pede a Lei de Deus (ROSSI, 2018, p. 51-52). A própria liturgia do Templo revela o quanto a santificação seja do povo de Deus, seja dos sacerdotes, seja do lugar de culto e até mesmo das ofertas era algo primordial. Os ritos judaicos eram marcados por símbolos de purificação para os fiéis e sacerdotes, os quais deveriam estar livres de toda impureza para oferecer um louvor agradável e condizente a Deus. Em diversas passagens bíblicas o Espírito de Deus é invocado como aquele que confere uma vida nova, um coração purificado. No livro de Ezequiel, por exemplo, Deus anuncia: “Dar-vos-ei um coração novo, infundirei em vós um espírito novo […]. Dentro de vós porei o meu espírito e farei com que vivais segundo as minhas leis” (cf. Ez 36, 26-27).

O cristianismo, em um processo de continuidade com a tradição espiritual de Israel, também intensificou a busca pela santidade, ao mesmo tempo que renovou o seu significado. Mais do que simplesmente o cumprimento de leis, a santificação é um processo de identificação com o próprio Deus. Se Deus é amor, o ser humano também deve viver essa realidade em sua vida de maneira profunda. O próprio Cristo ensinou que o comprimento perfeito da Lei é o amor. Santidade na cosmovisão cristã é ter os mesmos sentimentos de Cristo, isto é, viver a vida de Deus.

A base da santificação se encontra na santidade do próprio Deus. Só Deus é santo por essência. Ele é o “o Santo de Israel” (Is 43,3). Deus é chamado santo juntamente com o poder e o terror que procedem dele (Ex 15,11), ele é santo e “ciumento” (Is 24,19), santo e “verdadeiro” (Ap 3, 7), santo e “justo” (SI 145,17). Quando se fala de sua “santidade”, sempre se faz alusão à sua unicidade: Só Deus e Deus somente é santo. A palavra “santificação” designa então um agir de Deus pelo qual ele escolhe alguma coisa para si e faz dela sua propriedade, ou seja, faz com que ela participe do seu ser (MOLTMANN, 1998, p. 168.).

Os padres da Igreja desde os primeiros concílios, quando ainda havia debates sistemáticos sobre a pessoa do Espírito Santo e sua ação no mundo, enfatizaram por diversas vezes que sua obra primordial é a santificação de tudo que existe, mas de modo especial, o ser humano. Ainda que em tudo aquilo que uma pessoa da Trindade realiza também ajam as outras duas, considera-se como missão específica do Espírito de Deus santificar (BASÍLIO, 1998, p. 62). Basílio de Cesareia afirma que o Espírito é  “Santo”, como o Pai é santo, e santo é o Filho. Quanto às criaturas, recebem de outrem a santificação, mas para o Espírito a santidade é integrante de sua natureza. Por conseguinte, ele não é santificado, mas santificador” (BASÍLIO, 1998, p. 69).

Nessa perspectiva, “através do Espírito Santo a eterna vida de Deus como que flui, e suas forças e energias transbordantes enchem a terra. Vida experimentada neste Espírito transbordante é vida divina, vida na eterna comunhão de Deus, vida santa” (MOLTMANN, 1998, p. 171). Tudo aquilo que está sob a posse de Deus é santo. Esse princípio permite entender em que medida todas as coisas que são obras divinas são também santas. O homem só não vive imerso plenamente nessa realidade porque no espaço de sua liberdade, muitas vezes, escolhe aquilo que contraria o projeto de Deus. O ser humano precisa viver uma vida segundo o Espírito Santo para que seja santo, e para que a obra de Deus que é a salvação e santificação do homem peregrino nesta terra, seja efetiva. Viver conforme a inspiração do Espírito é buscar em tudo a santidade.

O que pertence a Deus é santo como ele próprio é santo. Segue-se daí que a santificação, assim como a justificação e a vocação, é um agir de Deus em nós. Aqueles que Deus justificou, ele também os santificou (Rm 8,30). Nós, homens pobres e pecadores, somos declarados santos e feitos santos por Deus na graça por causa de Cristo (MOLTMANN, 1998, p. 169.).

Ao fazer um processo de recordação da história do universo, que inclui também a do homem, da criação à redenção e salvação em Cristo, é possível observar que subjaz à ação de Deus, o princípio da comunhão. O relato da desobediência de Adão e Eva no jardim do Éden acentua a falta de comunhão do homem para com Deus desencadeada pelo pecado (LADARIA, 1998, p. 87-88). O Catecismo afirma que a única razão pela qual tudo foi criado por Deus, inclusive o ser humano, é por causa de seu amor e bondade. A não correspondência do ser humano a esse amor, revela no íntimo do ser humano uma desunião com Deus, um cisma entre sua liberdade e sua vocação primordial ao amor e à vida com Deus.

Os relatos bíblicos consequentes, como o dilúvio ou o recebimento das tábuas da Lei no Sinai, revelam um rosto de Deus disponível para fazer aliança com seu povo (LADARIA, 1998, p.108-109.). Pode-se dizer  que na economia da salvação há sempre uma tentativa de reconstituição da comunhão do Criador com a criatura por iniciativa divina. Para além disso, Deus deseja dar ao homem uma vida que ele não possui nem mesmo antes da queda. A vida santa e eterna é uma conquista de Cristo para a humanidade. Cristo, portanto, é aquele que inaugura a nova criação, onde a humanidade pode cultivar a esperança da comunhão plena com Deus. Através do mistério de sua vida, Jesus inaugura um novo tempo, no qual tudo é refeito a partir de si. Portanto, a justificação dos pecados da humanidade, bem como a regeneração para uma vida nova é um fato após a morte e ressurreição do Senhor.  Moltmann propõe que “se na morte vicária de Cristo por todos os homens a regeneração e a conversão de cada um já se realizou, então a obra do Espírito Santo só pode consistir em levar os homens ao conhecimento e ao reconhecimento deste fato, que sem a participação deles já ocorreu em favor deles”(1998, p. 146.).

O Espírito Santo não tem outra missão senão conduzir cada homem para a comunhão plena com Deus. Nesse caminho, cada ser humano precisará despojar-se do seu modo de viver segundo a carne para viver segundo o Espírito Santo (Gl 5, 24). A santidade consiste em estar inteiro diante de Deus (MOLTMANN, 1998, p.170.), isto é, não ter o coração dividido com outros deuses. Assim como a Trindade vive a realidade da comunhão entre as pessoas divinas, a vocação do  homem é a comunhão com Deus e com os outros. E nesse sentido, o impulso do Espírito age no interior de cada homem para restaurar a semelhança de Deus em sua vida.

Portanto a santificação da vida significa não sua manipulação religiosa ou moral, mas sim o tornar-se livre e justificado, amado e afirmado, sempre mais vivo. Vida no Espírito de Deus é uma vida que está confiada à condução e ao impulso do Espírito, uma vida que faz com que o Espírito venha. Consideremos as imagens bíblicas: Elas gostam de falar da árvore e dos frutos. “Os frutos do Espírito são: caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, confiança, mansidão…” Estas coisas estão voltadas contra as “obras da carne”: “discórdia, inveja, ira, rixas, dissensões, ódio, morte…” (Gl 5,22.19). Se a imagem é correta, então as obras da carne são “feitas”, enquanto os frutos do Espírito “nascem”. Não podemos fazê-los, mas podemos deixar que cresçam em nós. (MOLTMANN, 1998, 170-171).

Essa nova criação coloca no centro da mensagem cristã a santidade como estilo de vida.  Todo o processo de santificação no ser humano é uma transfiguração de seu ser naquilo que é próprio de Deus. A correspondência a todo o empenho de Deus em amar o ser humano consiste justamente na vivência concreta do amor por parte desse homem, como uma experiência diária, que transforma abundantemente o homem de dentro para fora, colocando-o em comunhão com Deus e com os outros (CANTALAMESSA, 2014, p. 230). Que o Espírito Santo, dom do Pai para a Igreja, esperado por cada fiel nesse Tempo Pascal, conceda ao seu povo a santidade pelo vínculo da caridade.

Referências Bibliográficas:

BASÍLIO MAGNO. Tratado sobre o Espírito Santo. São Paulo: Paulus, 1998. BÍBLIA SAGRADA. Brasília: Edições CNBB, 2019.

CANTALAMESSA, R. Vem, Espírito Criador: Meditações sobre o Veni Creator. São Paulo: Canção Nova, 2014.

CIC. Catecismo da Igreja Católica.

LADARIA, L. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Loyola, 1998.

MOLTMANN, J. O Espírito da Vida:     uma pneumatologia integral. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

MOLTMANN, J. Quem é Jesus Cristo para nós hoje? São Paulo: Editora Recriar, 2022a.

ROSSI, L. O Livro da Sabedoria: justiça e sabedoria como estilo de vida. São Paulo: Paulinas, 2018.

Autor: Igor Neves Ferreira- Seminarista em etapa de síntese na Paróquia Nossa Senhora da Piedade em Felixlândia.

Compartilhar: