Por Douglas Roberto Lopes:
Desde os seus primórdios, o ser humano busca se construir e desvelar o mistério que permeia a sua existência: quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Ao longo da história da filosofia, diversas foram as formas de autorretrato. Inicialmente, na antiguidade, era retratado como um homem racional, capaz de produzir cultura. No período medieval, o autorretrato se dá a partir da encarnação de Cristo, em que o homem se reconhece como criatura de Deus. Já a modernidade propõe um retrato totalmente inédito, apresentando um duplo modelo do homem, especificamente um dualismo entre o corpo e a alma, em que o homem se coloca como o centro da discussão. Diferente dos períodos anteriores, ele não se vê mais como uma comunidade, mas como um indivíduo.
Por fim, chegamos ao autorretrato contemporâneo. Esse é o que exige de nós atenção redobrada e um cuidado meticuloso, afinal, é o nosso tempo. O homem contemporâneo é um homem em que o autorretrato se equivale como ser fragmentado em nossa cultura atual. Para alguns, o homem já não parece mais ser humano. Esta frase soa estranha e contraditória: “o homem não humano”, mas pode ser explicada à luz da encíclica Dilexit Nos.
Contudo, já dizia Vinicius de Moraes, em sua canção Samba da benção: “A vida é a arte dos encontros, embora haja tantos desencontros pela vida”. Bem sabemos que o encontro com Deus é uma verdade inalienável, por isso, somos chamados a caminhar frequentemente rumo a Ele. No entanto, sabemos que possuímos diversas formas de caminhar, inclusive de forma perigosa, como andarilhos, sem rumo ou de qualquer maneira. Dessa forma, o encontro é uma experiência única, individual e singular. Por isso, o encontro com Cristo, como nos lembra uma frase atribuída a São João Paulo II, “acontece no dia a dia, na nossa rotina, no tempo e no lugar em que vivemos”.
Nesse sentido, a devoção ao Coração de Jesus, meio de encontrarmos e aproximarmos do amor de Cristo, esteve presente em diversas ocasiões da espiritualidade cristã desde os primeiros séculos da Igreja até os tempos atuais. Contudo, destaca-se sua importância recente, especificamente como resposta ao crescimento de diversas formas de espiritualidade que esqueciam e ainda esquecem da misericórdia do Senhor, ao mesmo tempo em que também lida com a crescente procura do homem contemporâneo de se construir sem Deus.
A devoção ao Coração de Jesus nos impele a meditarmos sobre o amor infinito de Deus, revelado em Jesus Cristo, nosso Senhor. Essa relação com o amor de Jesus leva-nos a contemplar sua inesgotável misericórdia. Durante o nosso cotidiano, somos convidados a ir ao encontro desse Cristo que deseja, incansavelmente, estar conosco, como nos recorda o evangelista “Eis que estou convosco todos os dias, até os fins dos tempos” (Mt 28, 20).
A encíclica Dilexit Nos, do saudoso papa Francisco, ajuda-nos a melhor refletir sobre o amor incondicional de Deus por cada um de nós. Assim, no parágrafo 77, o autor recorda que a nossa relação com o Coração de Cristo acontece sob o impulso do Espírito, que nos orienta mais ainda a um encontro em que desvelamos, pelo amor de Cristo, a misericórdia do Pai.
No parágrafo 87, o Papa adverte sobre um constante avanço da secularização que promove uma multiplicação de “várias formas de religiosidade sem referência a uma relação pessoal com um Deus de amor, que são novas manifestações de uma espiritualidade sem carne” (FRANCISCO, 2024, p. 47). Além disso, vivemos em um contexto social marcado por indivíduos que parecem ser incapazes de interiorizar e silenciar, mas que é por outro lado sinalizado por um cenário individualista, egoísta, autorreferencial, repleto de superficialidades e de pressa, ou melhor, de inquietação.
Essa realidade, embora pareça distante, é também experenciada em nossas comunidades paroquiais. Quantas vezes optamos por viver a cultura do “evento” e da “exibição” na paróquia em que fazemos parte? Servimos para sermos vistos, ou ainda, para que obtenhamos status. Muitas vezes, buscamos mudanças desprovidas do Evangelho, reflexões secularizadas e posturas egocêntricas. O resultado disso é, aparentemente, “um cristianismo que esqueceu a ternura da fé, a alegria do serviço e o fervor da missão pessoa-a-pessoa” (FRANCISCO, 2014, p. 47).
Ademais, o coração como um símbolo de interioridade é muitas vezes ignorado e sufocado. A vida emocional é instrumentalizada, quer dizer, vista somente por um viés de aparência e máscara. Isso porque, conforme refletimos, sem um coração bem formado, perderemos a capacidade de amar profundamente e viveremos de um certo “apateísmo” (indiferença com Deus). Por isso, é preciso reencontrarmos o valor do Coração de Jesus em meio a tamanhas fragmentações e inquietudes do nosso tempo.
Diante disso, motivados pela Dilexit Nos, surge-nos uma chama de esperança para esse autorretrato fragmentado do homem contemporâneo: o amor de Deus, que salva o ser humano dessa instrumentalização excessiva. Assim, a devoção ao Coração de Jesus quer ser uma experiência que nos ajude a redescobrir o que é essencial para a nossa vida, pois nos conduz à abertura ao mistério e a um encontro íntimo com o verdadeiro amor.
Que à luz dessa reflexão, sejamos capazes de reencontrar o valor do Coração de Jesus, no qual é possível retornar à síntese do evangelho: a misericórdia, essência do amor divino revelado em Jesus Cristo. Essa misericórdia que é capaz de curar essas “doenças” atuais do individualismo e autorreferencialidade, que, se não enfrentadas, podem nos aprisionar a ponto de nem sequer desejarmos a cura. Portanto, depositemos em Cristo e em sua infinita misericórdia a nossa confiança, pois Ele é a nossa esperança, e esta “não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FRANCISCO, Papa. Dilexit Nos: carta encíclica sobre o amor humano e divino do coração de Jesus Cristo. Brasília: Edições CNBB, 2024.
Autor: Douglas Roberto Lopes dos Santos – 3° ano do Discipulado