Por: Sílvio Gomes
“O Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor.” (Lc 1,49)
As palavras de Maria a Isabel, contidas no Evangelho da solenidade da Assunção de Nossa Senhora, são um convite a contemplar o agir amoroso de Deus, que torna o gênero humano não um espectador passivo, mas o converte, através das maravilhas operadas na vida dos que por ele foram escolhidos, em cúmplice ativo de seus desígnios salvíficos. De fato, o Senhor chamou homens e mulheres, de geração em geração, para que fossem suas testemunhas e luzeiros resplandecentes, a fim de reorientar os corações e o cosmos para si, até que, chegada a plenitude dos tempos, enviou ao mundo o seu Filho, Jesus Cristo, para que, assumindo a condição humana, congregasse a todos numa única família.
Em vista disso, quis o Pai, segundo seu eterno e presciente conselho, que a Bem-aventurada Virgem Maria viesse a ser a mãe do novo Adão e a primeira mulher da nova criação, ao ser preservada, desde a sua concepção, da mancha do pecado original. Desejada desde a eternidade para esposa do Espírito Santo, não foi um mero joguete dos planos divinos — que lhe concederam nada mais que os meios necessários para responder livre e dignamente à sua vocação —, mas, acolhendo o anúncio do anjo, assumiu o chamado rejeitado pelos seus antepassados, isto é, serem cooperadores na obra da criação, ofertando a sua vida e o seu ser para que, através de seu ventre imaculado, o mundo fosse recriado por Cristo Jesus.
Ao dizer “faça-se em mim segundo a sua palavra”(Lc 1, 38),
“ela ofereceu ao Criador os meios para ser criado, ao Modelador a matéria para ser moldada, ao Filho de Deus e verdadeiro Deus a possibilidade de encarnar-se e tornar-se homem, tomando de sua carne e de seu sangue puro e imaculado, cumprindo assim a dívida da sua antepassada”.
Após o Egito, em Nazaré, foi por meio dela, juntamente com José, que o próprio Deus aprendeu de modo concreto o que é ser homem.
Ao longo de toda a sua vida, “a mãe deu tudo a seu filho: seu coração, sua honra, seu sangue, toda a força do seu amor. Aceitou-o incondicionalmente2”. Sempre esteve ao seu lado desde o nascimento até sua morte redentora na cruz, silente, guardando e meditando cada palavra e cada gesto em seu coração, e mesmo quando não parecia compreender completamente o que se sucedia, ou quando parecia que seu Filho, à medida que chegava o momento de sua máxima entrega, parecia se elevar sobre ela até o inatingível, “pela fé, ela sempre o alcançou, para abraçá-lo de novo” (Guardini, 2021. p. 26).
Em momento algum perdeu a confiança, como mulher, em suas possibilidades, no amor de seu Filho ou nas promessas de Deus, pois sabia que Ele levaria à completude a obra começada. Por isso, diante da morte de Jesus, não desesperou, mas esperou até que pudesse ser arrebatada pela alegria da aclamação: “Ressuscitou como disse”! Depois da Ascensão, acompanhou, como Mãe, a Igreja nascente em seus primeiros passos; e recebeu, juntamente com os discípulos, o mesmo Espírito que outrora a fecundara.
Quantas maravilhas o Senhor realizou na vida de sua serva em vista dos méritos de Cristo Jesus! Como então seria possível que tão singular criatura conhecesse a corrupção da morte? Nunca houve, desde o Éden, criatura que se achasse em um estado de graça original, ou que houvesse tido proximidade tão íntima com o altíssimo a ponto daquele para quem e pelo qual tudo foi criado (Cl 1, 16-17) a chamasse de mãe. Como permitir que a morte pusesse fim a esta união, a esta íntima mesma proximidade? Portanto, “parece quase que impossível contemplar aquela que concebeu, deu à luz, alimentou com o seu leite, a Cristo, e o teve nos braços e apertou contra o peito, estivesse agora, depois da vida terrestre, separada dele, se não quanto à alma, ao menos quanto ao corpo” (Munificentissimus Deus, nº. 38).
Sim, é impossível pensar Cristo na glória sem a sua mãe unida a ele, mas também, como diz São João Damasceno,
“convinha que aquela que no parto manteve ilibada virgindade conservasse o corpo incorrupto mesmo depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no seio o Criador encarnado, habitasse entre os divinos tabernáculos. Convinha que morasse no tálamo celestial aquela que o Eterno Pai desposara. Convinha que aquela que viu o seu Filho na cruz, com o coração traspassado por uma espada de dor de que tinha sido imune no parto, contemplasse assentada à direita do Pai. Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que era do Filho, e que fosse venerada por todas as criaturas como Mãe e Serva do mesmo Deus”.
Sendo assim, a Igreja definiu solenemente no ano de 1950, após séculos de tradição e reflexão, que “a imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial” (Munificentissimus Deus, n.º 44). A cada ano todo o orbe é convidado a concretizar a profecia que Lucas coloca nos lábios da Virgem toda santa em sua visita à sua prima (Lc 1, 48) e clamar com voz vibrante: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre” (Lc 1, 42)!
Faz-se ainda necessário ressaltar, mesmo que correndo o risco deste texto tornar-se demasiado difuso — já que o assunto seguinte já esteja implícito em outros tópicos —, que engana-se quem pensa que o esplendor desta solenidade ofusca a glória de Cristo, através de uma exaltação exagerada com relação à mãe de Deus. Muito pelo contrário: os esplendores da Virgem, por participação, são os esplendores de Cristo, pois não seria possível a existência de tal comemoração na vida da Igreja se Cristo Jesus, não houvesse ressuscitado dos mortos como primícia dos que morreram (1 Cr 15, 20). Ele, esvaziando-se de si mesmo, ao vencer a morte e o pecado, concedeu a cada ser humano o dom da vida imortal, readmitido, por meio de seu corpo, que todo o gênero humano regressasse à comunhão de amor com o Pai.
Sendo assim, Maria é muito mais que um exemplo a ser seguido em suas virtudes de vida, mas é uma predição da sorte de todos aqueles que estão em Cristo, pois, por meio d’Ele, todos reviverão (1 Cr 15, 23b) não apenas em espírito, mas poderão dizer, assim como Jó: “[…] sei que meu redentor está vivo, que no último dia me levantarei da terra, que de novo serei eu envolvido por minha pele e que em minha carne, eu verei meu Deus” (Jó 19, 25-264). Mas esta carne não é o corpo físico conhecido, mas um corpo glorioso, divinizado pois será plenamente templo do Espírito, indivisamente consagrado a Deus, ainda desconhecido, semelhante ao do Ressuscitado, o mesmo que a Santíssima Virgem recebeu.
“Nesse ínterim, a Mãe de Jesus, tal como está nos céus já glorificada de corpo e alma, é a imagem e o começo da Igreja como deverá ser consumada no tempo futuro” (Lumen Gentium, nº. 68). Maria se faz mais uma vez pedagoga, assim como em Nazaré, e ajuda o corpo místico de seu Filho a compreender que a verdadeira glória não é a escrita nas páginas da história transitória — na qual cada ser humano deseja cravar sua forma definitiva, manipulando-a tecnicamente, qual operário incansável movido pela incessante sede de poder, pois esta lhe será retirada nos últimos dias quando o Senhor vier como juiz da história, derrubando os poderosos de seus tronos e despedindo sem nada os ricos, elevando os humildes (Lc 1, 51-52).
Antes, a glória da Igreja, que é a glória dos Filhos de Deus, é ser finalmente admitida no palácio real, a fim de participar das bodas do cordeiro, e lá ser considerada digna de encanto pelo Rei dos reis por sua beleza, merecedora de assentar-se ao seu lado e de unir-se a Ele por toda a eternidade. Nesse dia, assim como a mulher do Apocalipse de São João (Ap 12,1), será revestida com o sinal da máxima dignidade que a vida do próprio Cristo, a vida imortal (sol), e assentada à direita de seu Senhor, terá como escabelo por debaixo de seus pés as realidades passageiras que a oprimiam (lua), estando coroada de realeza por sua vitória obtida pela fé que recebeu da pregação dos apóstolos e que até alí conservou com fidelidade (coroa de doze estrelas).
A casa paterna será esquecida, ou seja, o mundo ferido de morte na qual foi concebida e assim se concretizará, nessa participação do esplendor de Deus por meio de seu primogênito, pela graça e não de um modo ontológico independente, aquilo que foi dito: “Homens, vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo” (Sl 82, 6). Nesse sentido, Maria “brilha aqui na terra como sinal de esperança segura e do conforto para o povo de Deus em peregrinação, até que chegue o dia do Senhor” (Lumen Gentium, nº. 68), quando derrotadas as potências do mal, e o feroz dragão que deseja silenciar e tornar estéril a Palavra, a voz vinda do céu haverá de soar forte proclamando que “agora realizou-se a salvação, a força e a realeza de nosso Deus, e o poder do seu Cristo” (Ap 12, 10).
Celebrar, portanto, a assunção de Nossa Senhora é fazer memória do “já” realizado na vida de Maria, mas antecipar a celebração do “ainda não” que se concretizará na vida dos santos quando puderem, entre cantos de festa e com grande alegria, ingressar no palácio real (Sl 44, 16), no Santo dos Santos. Que este seja o desejo de cada batizado, que se esforcem dia após dia, apesar de suas limitações, a atingir tão grandiosa meta e que nunca se cansem de rezar:
“Rogamos-te, pois, ó Senhora nossa, ínclita Mãe de Deus, exaltada acima do coro dos anjos, que enchas o vaso do nosso coração com a graça celeste; que nos faças resplandecer com o ouro da sabedoria; que nos sustentes com o poder de tua intercessão; que nos ornes com as pedras preciosas de tuas virtudes; que derrame sobre nós, ó azeitona bendita, o azeite de tua misericórdia, com o qual cubras a multidão de nossos pecados, e assim sejamos considerados dignos de ser elevados às alturas da glória celeste e viver felizes para sempre com os bem-aventurados”.
Acenda, portanto, esta solenidade a chama da bendita esperança na vida futura e no triunfo sobre todo esquema de pecado e de morte que rouba a dignidade que foi restituída ao gênero humano pelo Cristo Senhor. Amém!
Referências Bibliográficas:
CONCÍLIO VATICANO II. Lumen Gentium: Constituição dogmática sobre a Igreja. Roma: Vaticano, 1964. n. 68.
DAMASCENO, Giovanni. La Fede Ortodossa. Introduzione, traduzione e note a cura di Vittorio Fazzo. Roma: Città Nuova, 1998. p. 276. Tradução nossa para o português.
GUARDINI, Romano. O Senhor: Reflexões sobre a pessoa e a vida de Jesus Cristo. São Paulo: Cultor de Livros, 2021. p. 24.
JOÃO DAMASCENO, Santo. Encomium in Dormitionem Dei Genetricis semperque Virginis Mariae, hom. II, 14; cf. também ibid., n. 3.
PIO XII, Papa. Munificentissimus Deus. Roma: Vaticano, 1950. n. 38.
SANTO ANTÔNIO. Sermões. Trad. Fr. Ary E. Pintarelli O.F.M. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 927.
