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Fortunato, o jumentinho

Fortunato, o jumentinho

 

Um conto de Natal

Pe. Júlio César Morais

 

Em uma manhã fria do hemisfério norte, de um parto longo e difícil, nasceu o jumentinho Fortunato. Com muito custo o tiraram do invólucro vital e ele, cambaleante, amuou-se ao lado da mãe, a forte e bela jumenta que atendia pelo nome de Fortuna. Ela estava ofegante e prostrada e, apesar dos muitos esforços dos presentes, minutos depois se acabou. O filhinho acompanhou tudo sem compreender bem o que se passava, mas nunca esqueceu o olhar de sua mãe no momento do seu último expirar. Na tarde daquele mesmo dia, decidiram dar ao pequeno órfão o nome de Fortunato em homenagem à mãe defunta e porque sobrevivera a um parto tão complicado.

Fortunato cresceu solitário e taciturno. Gostava de se lembrar do olhar agonizante da mãe e de culpar-se pela sua morte: “Se eu não tivesse nascido, minha mãe não teria morrido…” E se punha a filosofar: “Se o preço da vida é a morte, por que é então que a gente vive?” E passava a conclusões existenciais: “Eu queria mesmo é des-viver…” De tanto assim refletir, os seus grandes olhos viviam marejados. Por ser demasiado sorumbático, apanhou várias vezes, pois, na compreensão de todos, parecia mesmo ser um preguiçoso inveterado. Certa vez recebeu um conselho de um jumento mais vivido que o fez muito pensar: “Fortunato, menino, seu problema é o passado! Deixa pra lá essas lembranças! Quem recorda demais, vive triste”. Então Fortunato decidiu-se a trocar as lembranças pelos sonhos: “o segredo é sempre ocupar a mente”, pensava consigo. E povoou a sua cabeça de mil sonhos e expectativas. Sonhava viagens e reinos distantes e o encontro com alguma jumentinha bela e elegante, como diziam ter sido sua mãe. Era, então, que o sonho se rarefazia em lembrança e a lembrança se condensava em saudade, a saudade se solidificava em tristeza e a tristeza se liquefazia em lágrimas. Fortunato, porém, não se dava por vencido. Agitava a cabeça, azurrava forte e voltava a sonhar. E tanto exercitou-se na arte do sonho que muitas vezes chegou a esquecer-se de estar acordado.

Foi assim numa tarde de sol escaldante, quando carregava dois grandes cestos de figos, que, para remediar o cansaço, Fortunato sonhou que caminhava nas nuvens. Caminhou com tanta leveza e força que, não percebendo um buraco à sua frente, pisou em falso e acabou por rolar morro abaixo. Era tanto o seu transe onírico que a descida lhe pareceu uma venturosa queda do céu à terra. A queda real, porém, lhe custou muito. O pobre jumento teve as duas patas dianteiras quebradas. Nunca mais foi o mesmo. Caminhava com muita dificuldade, quase se arrastando e não servia mais para nada. Chegaram mesmo a pensar em sacrificá-lo, não o fazendo, simplesmente, por falta de iniciativa.

Os dias mais difíceis para Fortunato eram aqueles em que via os seus companheiros enfileirarem-se para tomar parte nas caravanas que iam ao Oriente levar e trazer cargas: “Como eu queria conhecer o mundo e os reinos distantes. Vocês tratem de ver tudo com atenção para depois me contarem com detalhes! Vão em paz e voltem logo!” Assim ele se despedia de todos, resignado e forte, todavia, quando se encontrava sozinho, caia em prantos.

Em um daqueles dias sofridos, de solidão e melancolia, que se acentuava ao cair da tarde, Fortunato se encontrava na gruta junto a outros seus companheiros que, como ele, não tinham condições físicas de partir para alguma longa viagem. Estava sem apetite algum. Olhava a manjedoura e lhe vinham náuseas profundas. Refugiou-se nos sonhos. Foi, então, que avistou uma jovem senhora quem vinha sobre um jumentinho lento e tremulante que um homem de porte elegante conduzia pelas rédeas. Tomando a jovem em seus braços, o homem a desceu da montaria. Fortunato arregalou os seus olhos úmidos e grandes e viu que o jovem senhor estava com o rosto assustado e a jovem moça em horas de parto. Fortunato teve muito medo por ela e pelo seu filhinho. Quis ajudar, mas não sabia como. Para não decair dos sonhos aos pesadelos, pensou em realidades. E subitamente viu a Mãe a embalar o seu Filho nos braços, depois de tê-lo envolvido em pobres faixas. Pensando que a mãe poderia estar cansada, Fortunato fez um aceno de cabeça oferecendo a sua manjedoura como berço para o Nascido. Então o homem, depois de prepará-la com palhas secas, reclinou ali o seu Protegido. E como soprasse um vento leste que fazia tremer o Menino, Fortunato aproximou-se e se deitou ao seu lado fazendo-se muro de proteção e como tremesse ainda o Menino, com suas profundas narinas soprou um hálito quente para aquecê-lo. O Pequenino esboçou o seu primeiro sorriso na terra. Ao ver isso, a jovem Mãe sorriu largamente e o homem a seu lado chegou mesmo a rir alto. A Mãe, agradecida, olhou para Fortunato, afagou-lhe o focinho e beijou-lhe uma das faces. Seus grandes olhos brilharam como nunca, desejosos de que aquele sonho não se acabasse e o seu encanto não se quebrasse jamais. Para tanto, o jumentinho sonhou com a maior veracidade possível que aquele momento era eterno, que pelos séculos dos séculos renasceria o Menino e que novamente seria reclinado em sua manjedoura, e que ele, fortunatamente, poderia ajudar a aquecê-lo do frio, a arrancar um sorriso dos seus genitores e permaneceria para sempre ali, com os olhos arregalados, ignorantemente extasiado, em contemplação do Mistério.

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